Temática nublosa: Até quando este desnorte na gestão dos recursos humanos nas autarquias portuguesas?
Os empregados da câmara no tempo e para o poeta Manuel da Fonseca eram assim:
É tão vazia a nossa vida, é tão inútil a nossa vida que a gente veste de escuro como se andasse de luto. ao menos se alguém morresse e esse alguém fosse um de nós e esse um de nós fosse eu…
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…O sol andando lá fora, fazendo lume nos vidros, chegando carros ao largo com gente que vem de fora (quem será que vem de fora?) e a gente pràqui fechados na penumbra das paredes, curvados pràs secretárias fazendo letra bonita |
Fazendo letra bonita e o vento andando lá fora rumorejando nas árvores, levando nuvens pelo céu, trazendo um grito da rua (quem seria que gritou?) e a gente pràqui fechados na penumbra das paredes, curvados pràs secretarias fazendo letra bonita, enchendo impressos, impressos, livros, livros, folhas soltas, carimbando, pondo selos, bocejando, bocejando, bocejando.
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Hipérbole, ironia, eufemismo? Não me preocupa as figuras de estilo utilizadas pelo poeta Manuel da Fonseca. Este poema: Coro dos empregados da Câmara é um grande chamariz para tratar a temática nublosa: os funcionários públicos nas autarquias portuguesas. Não tenho interesse em abordar os funcionários públicos no geral, para isso leiam os jornais ou vejam os blocos noticiosos dos canais de televisão; mas, antes escrutinar os funcionários das câmaras municipais. Sistematicamente, apontamos o dedo para a qualidade e competência dos funcionários públicos ligados aos vários ministérios – enfermeiros, médicos, professores de entre outros –, no entanto, somos tolerantes, condescendentes e negligentes com um certo funcionalismo público que se pratica nas autarquias portuguesas.
“(…) A minha terra não é inefável./A vida da minha terra é que é inefável/ Inefável é o que não pode ser dito.” Estas palavras de Jorge de Sena – poema os paraísos artificiais –, não podiam fazer mais sentido para de uma vez por todas reforçar a premência de questionar a produtividade dos trabalhadores das autarquias; ora vejamos o seguinte: qualquer câmara municipal tem acima de cento e cinquenta funcionários e desta feita em zonas deprimidas do interior funcionam como a principal entidade empregadora, ou seja, o Estado é o maior e único patrão, logo os salários são provenientes, em grande escala, das receitas dos impostos dos contribuintes singulares e coletivos do sector privado. Este ponto prévio pode ser encarado como um absurdo, no entanto, é de extrema importância porque ainda existem criaturas que pensam que caem sacos cheios de notas do céu para lhes pagar o salário ou que os sucessivos governos têm um furo que em vez de brotar água, brota dinheiro.
Findado o introito e sem mais delongas, debrucemo-nos naquilo que é inefável e para tal observemos os mapas de pessoal das câmaras municipais e as contratações por ajuste direto (não se dispensa a consulta do portal do Estado para esse efeito), por exemplo, o mapa de pessoal da Câmara Municipal hoje Terra Forte, outrora Vila Branca e reparamos que figuram muitas pessoas repartidas por diversas funções, desde: tratorista, porta miras, cantoneiro de limpeza, nadador-salvador, professora de educação física, designer, engenheiro civil, bilheteiro, administrativa, motorista (ligeiros e/ou pesados); a: telefonista, arqueólogo, topógrafo, sonoplasta, calceteiro, engenheiro de recursos hídricos, engenheiro do ambiente, desenhador, carpinteiro, arquiteto, bibliotecário, ou seja, há um pouco de tudo.
Deambulamos,
rapidamente, pelas ruas e para uma cidade pequena verificamos que: 1) a pintura das fachadas e interior das infraestruturas camarárias não acontece, exemplo disso é o Cineteatro, a Piscina Municipal Cobertas, o Pavilhão Carlos Pinhão (foi iniciada e não acabada), porém, a câmara paga salário a alguém com profissão de pintor; 2) a limpeza incompleta e outras vezes inexistente das ruas, o recinto das escolas primárias inativadas não é contemplado nas tarefas semanais de remoção dos detritos/folhas secas, o lixo nos canteiros é esquecido, nos espaços com relva a vassoura não passa, a limpeza do espaço envolvente da piscina municipal só é realizada umas semanas antes da sua respetiva abertura ao público, as bermas das circulares interna, das ciclovias são limpas desleixadamente, porém, a câmara paga salários a diversas pessoas com funções de cantoneiro de limpeza; 3) as janelas da Biblioteca Municipal, da sede da câmara municipal, do Espaço Internet, da Musibéria, por exemplo, só se registam a sua limpeza, quando a época das chuvas acontece e mesmo assim, como as gotas da chuva não têm braços e nem olhos os ninhos dos pássaros permanecem. Sem deixar de frisar que a limpeza e manutenção do interior destes espaços deixa muito a desejar: as teias no teto, no sistema de iluminação do cineteatro é de bradar aos anjinhos, é pena eles gostarem só de instrumentos musicais, se tivessem um espanador, de certeza que já as tinham tirado, porém, a câmara paga os salários às auxiliares dos serviços gerais contratadas; 4) os contentores do lixo não são lavados com a frequência que anunciam no jornal informativo do município e muito menos na assiduidade mensal que a câmara cobra na fatura da água, porém, a câmara paga salário aos auxiliares dos serviços gerais contratados; 5) a poda das árvores espalhadas pela cidade ou não é feita ou é mal executada, as laranjeiras ficam com pernadas a mais ou só fica a luzir o tronco. Naquelas árvores adjacentes aos bancos públicos que deveriam servir de abrigo ao sol forte, esqueçam, a poda é feita ao contrário: cortam os ramos que iriam fazer sombra e ficam as pernadas largas e altas que depois nos dias ventosos lascam e contribuem para que a fase da regeneração e fortalecimento da árvore não seja sadio, porém, a câmara paga salários a técnicos contratados que supostamente deveriam saber desta arte; 6) os buracos por calcetar dispersos pelas ruas, sem referir as passadeiras gastas que em muitos casos, pensa-se que ali já esteve uma passadeira para os peões passarem, porém, a câmara paga salários a calceteiros e outros contratados para fazer essas tarefas; 7) há fissuras no exterior da Biblioteca Municipal, no entanto, não há meio de as fazer desparecer, o Cineteatro tem infiltrações na cobertura/telhado que causam danos no revestimento de madeira presente nas paredes, mas não minimizam o estrago, dizem que estão à espera de verba para fazer uma manutenção mais profunda. Para esta câmara só faz sentido obras de grande envergadura, pequenos consertos, pequenos arranjos estão fora de cogitação, porém, a câmara paga o salário aos seus funcionários pedreiros, arquitetos, engenheiros civis. Em abono da verdade serviu de pouco ter técnicos especializados no seu staff camarário, pois, num edifício planificado e construído de raiz esqueceram-se de colocar uma rampa na porta principal para quem tem mobilidade reduzida permanente ou temporária – até para os carrinhos de bebé fazia jeito –, e para disfarçar o lapso de incompetência, o esquecimento vergonhoso colocaram a rampa numa das portas laterias, como se esta franja da sociedade não tenha o mesmo direito de entrar pela mesma porta que entra o Vereador ou Presidente da Câmara, caso lhe apeteça mergulhar no mundo dos livros ou simplesmente ir ver uma exposição ou assistir a um lançamento de livros. Entrar, entra sempre, mas pela porta lateral. O edifício a que me refiro é a Biblioteca Municipal Abade Correia da Serra; 8) o jardim municipal foi tornando-se, com o passar dos anos, num espaço tosco, descuidado, não aprazível e com evidentes sinais de abandono, mais parecendo, em certos sítios, um matagal. A espera pelos fundos europeus ou de outra natureza não justifica o estado atual do jardim público, porém, a câmara paga o salário aos seus funcionários jardineiros. E há mais uma situação caricata: o funcionário decidir voluntariamente não aplicar o horário de Verão e fechá-lo às 18 horas; 9) não há nenhuma justificação plausível para as constantes fugas de água provenientes do mau funcionamento do sistema de rega dos espaços verdes/relvados. Em muitos casos, esse desperdício de água perdura não escassas horas, mas sim dias infindáveis e reportando o problema e/ou passando indivíduos afetas à Câmara Municipal pela rotura de água – não a veem, ou melhor, fingem não a ver –, mesmo assim, não é resolvida, porém, a câmara paga salários a canalizadores e outros para fazer essas tarefas e para que serve, igualmente, o piquete das águas? E podia continuar…
Não é má pensada a sugestão, é pena, até ao momento, nenhum presidente de município a ter seguido: “Dizia um secretário de Estado, meu amigo, que para se repartir com igualdade o melhoramento das ruas por Lisboa, deviam ser obrigados os ministros a mudar de rua e bairro todos os três meses.” (Almeida Garrett, in Viagens na Minha Terra)
Causa confusão – será só a mim? – algumas pessoas são contratadas para desempenharem funções específicas e não as desempenham com brio profissional.
Uns nada fazem, outros pouco fazem, os que sabiam fazer algum ofício depressa esqueceram e os que nada sabem depressa disfarçam, apesar de tudo, recebem o seu salário sem preocupações. Esta forma de estar no emprego público camarário faz-me lembrar uma parte do poema “Tampo Vazio” de Raúl Brandão: “Como me mandam sempre / Fazer o que não sei… / Encho-me de pavor por não saber… / Penso depois que o necessário é preencher o tempo…/ É o que tenho feito./ De qualquer maneira…/De todas as maneiras…”
Pergunto: estes funcionários trabalhariam no sector privado? Dado o índice de produtividade acho difícil, não passavam da semana à experiência. Este estado de sítio tem dois culpados: as chefias e o Presidente da Câmara. As chefias não planeiam e não distribuem convenientemente as tarefas pelos seus funcionários, acrescentado que pouca ou nenhuma monotorização é feita, para averiguar se a tarefa foi bem ou mal realizada. E não aceito a desculpa esfarrapada que têm poucos funcionários, estão é mal distribuídos e subaproveitados. E têm de pedagogicamente lembrar aos funcionários no regime por tempo indeterminado que têm de cumprir com as funções para que estão a ser assalariados, e não cabe à pessoa destacada, temporariamente, para os serviços da câmara, ou seja, os beneficiários do RSI e principalmente os beneficiários do subsídio de desemprego – este assunto daria pano para mangas –, fazerem o trabalho por eles; por outro lado, o Presidente da Câmara deve ter um papel de vigilante e pedir coordenação e eficácia laboral às chefias. Bem sei que certas competências foram delegadas à Junta de Freguesia, mas o Presidente da Câmara é o responsável máximo e pode exigir sempre mais e melhor perícia na execução das competências delegadas. Para além disso, o Presidente da Câmara tem de, obrigatoriamente, tomar decisões difíceis e delicadas e uma delas passa pela gestão dos recursos humanos, ou seja, pela racionalização e adaptação do quadro de pessoal às necessidades operacionais diárias da autarquia.
Infelizmente, nada disto ocorre, reina um amadorismo nos encarregados e chefes em que encaram não com espirito de trabalho, mas de emprego os cargos que lhes foram outorgados, dado que conseguiram essa responsabilidade não à custa da boa qualificação e qualidades de liderança, mas à conta do cartão do partido vigente ou da simpatia e/ou confiança do Presidente da Junta ou Câmara. Assistimos com muita parcimónia, por parte de todos os cidadãos/contribuintes, a esta idolatria de recrutar para fazer vontades, pagar favores em que não se vislumbra uma utilidade nessa contratação, pois, os dias passam e nenhum trabalho funcional e imprescindível se conhece, apenas se conhece cada vez mais o peso das despesas salarias no orçamento de uma Câmara Municipal do interior, chegando ao extremo de grande parte do orçamento servir para o pagamento de salários, e, tecnicamente, não deveria ser assim.
Adindo com mais dois pontos: é inexplicável, a título de exemplo, a dupla despesa levada a cabo pela Câmara Municipal hoje Terra Forte, outrora Vila Branca ao contratar os serviços externos de oficinas, quando têm mecânicos na sua equipa de funcionários. Interrogo: se têm funcionários que não estão habilitados para as funções que ocupam, porque é que os mantêm, ou porque é que não os mudam para funções para as quais sejam capazes de as cumprir? Por qual razão não são avaliadas as suas aptidões? A auferir salários intermédios deveriam ter as aptidões exigidas à função. É a tal racionalidade de despesas que deve existir, o dinheiro é do bolso do contribuinte e por isso, não deve ser arbitrariamente aplicado, primeiro ponto; segundo ponto baseia-se na atualização das categorias e carreiras dos funcionários e à partida foi só isso mesmo que fizeram: atualizaram as denominações, no entanto, não adequaram os salários às novas categorias, pois se realizassem exames teóricos e práticos perceberiam que não estão aptos para a função que estão a ocupar, logo, o salário está desadequado, e com a agravante de na maior parte terem evoluído na carreira salarial não por melhoria das suas qualificações, mas porque na função pública subiam de escalão salarial com a antiguidade. Felizmente, que tal situação foi abolida e houve uma aproximação ao regime de trabalho no sector privado.
É este funcionalismo público que vos pretendo patentear e exorto os cidadãos/contribuintes para assistir ao espetáculo teatral deprimente da saída dos “trabalhadores” ora da sede do município, ora do estaleiro.
Não tenham preguiça e vão espreitar nas localidades onde residam a azáfama que é o fim da jornada de trabalho do “trabalhador”, que saem dos estaleiros com as camisas encharcadas de transpiração e as bochechas ensanguentadas de tanto esforço braçal e mental. Caro leitor: pode assistir a este espetáculo teatral, que não fica nada atrás da grande produção do Cirque du Soleil de graça, por desdita, o bilhete paga você todos os meses.
É incrível como assistimos impávidos e serenos a esta má gestão dos recursos humanos nas autarquias, parecemos que somos todos portadores da síndrome de avestruz, enterramos a cabeça ao número excessivo de funcionários afetos a uma autarquia, todavia, temos debaixo do nosso nariz o número de funcionários e os respetivos ordenados pagos pela RTP. Devo dizer que é uma atitude correta e devemos estar atentos à RTP, à Carris, à CP, a todas as empresas que vivam com fundos provenientes dos impostos dos contribuintes. O que não posso deixar de partilhar, com o leitor, é esta sensação que tenho: o que preocupa o cidadão no geral é o despesismo nos organismos públicos sedeados em Lisboa, Porto, os governos regionais Madeira e Açores. Estão longe de nós, não nos ouvem, não sofremos represálias, não influenciam a nossa vivência quotidiana.
Por medo ou por outra razão qualquer, somos uns cidadãos/contribuintes anestesiados no que toca a pedir boa governança aos eleitos autárquicos, a pedir explicações por não desempenharem as suas funções para que foram eleitos, a reclamar os nossos direitos, e fazer valer a nossa relevância sempre e não apenas quando nos procuram para a caça ao voto, essa é que é essa.
Pouco mais fazemos do que gracejar quando presenciamos situações aberrantes e/ou ouvimos comentários do género: lá vai sicrano picar o ponto para uma semana de férias; lá vão os que fingem que vão trabalhar para manifestações reivindicar o sol e a hipótese de fazer muito menos, dizemos: ainda bem que fazem greve, eles dão mais prejuízo indo trabalhar do que ficando em casa; beltrano passa onze meses a descansar para depois no mês oficial de férias passa-lo a fazer biscates; lá estão os braços de trabalho a fazer a quinta pausa da manhã, a desculpa é o vicio do tabaco e se tiverem um café próximo aproveitam para ler o jornal do dia – fazem fila à espera que seja a sua vez para deitar uma olhadela às noticias –, ou para terem um dedo de conversa com o reformado para saber os mexericos alheios do dia na “aldeia”; rimo-nos da situação: para fazer a limpeza de manutenção da berma de uma ciclovia estão aglomerados quatro ou cinco trabalhadores: um a fingir que corta a erva e os outros quatro, desavergonhadamente, de braços cruzados a olhar para quem passa, olham para tudo, menos para o trabalho que têm de levar a cabo; aceitamos o tique de todos e quem não o tinha passa a ter: em faltando meia hora para saída do “trabalho”, começam a arrumar a secretária, a despir o fato de macaco e/ou a arrumar as ferramentas de trabalho. Nem um segundo a mais permanecem no “local de trabalho” para não criar habituação e assim sucessivamente.
Galhofamos deles, mas na realidade eles é que se divertem com a nossa cara: Chamem-nos mandriões à vontade, enquanto chalaçam nós vivemos à vossa conta. Enquanto pagarem o bilhete, têm de esperar dos funcionários públicos municipais um bailarico de variedades.
Regra geral, estes modus vivendi e modus operandi são transversais a todos os funcionários públicos autárquicos e não é especificamente desta ou daquela Câmara Municipal. Foi esta como poderia ter sido a de Beja, Évora, Setúbal ou Lisboa.
O paradigma do grandíssimo desnorte na gestão dos recursos humanos nas autarquias tem vindo a agudizar de ano para ano e naturalmente é inaceitável e tem de ser necessária e objetivamente debatido por todos os cidadãos / contribuintes. Não tem interesse para os funcionários públicos e nem para os sindicatos que haja debate, uma vez que, incomoda os instalados no poder político local e no poder de ser funcionário de uma autarquia portuguesa.
Tentei lançar pontos para o debate…
“Se assim o pensares, leitor benévolo – quem sabe? –, pode ser que eu tome outra vez o bordão de romeiro e vá peregrinando por esse Portugal fora, em busca de histórias para te contar.” (Almeida Garrett, in Viagens na Minha Terra)
Até lá, fico a aguardar outros pontos lançados pelos leitores para agitar cordialmente e sem demagogias o debate…