Teletrabalho: de burguês tem muito pouco
Em Junho, foice no punho.
Não podia ter escolhido melhor mês para utilizar a foice! Vamos lá começar a ceifar o trigo da minha indignação para preparar o restolho para outras insatisfações.
De canudinhos nos dedos a ceifa inicia-se agora:
"Natacha olhou a fotografia da noiva de Tunda e embora se sentisse ciumenta, devolveu-lha com um gesto de indiferença, acrescentando:
《Que gaja tão burguesa!》"
Joseph Roth, Fuga Sem Fim
Confesso que quando li "burguesia do teletrabalho", instintivamente, os meus pensamentos voaram sem freio até ao Antigo Regime (entre os séculos XVI e XVIII).
O Antigo Regime (Idade Moderna) caracterizava-se pela a existência de uma sociedade de ordens, as três ordens ou estados eram: clero, nobreza e o povo (ou Terceiro Estado). É de reforçar que era uma sociedade excessivamente estratificada e hierarquizada, ou seja, estava dividida em grupos bem definidos assentes em critérios (de honra e dignidade) ligados ao nascimento, à profissão, ao nível cultural ou económico.
Os burgueses estavam "alistados" na ordem social correspondente ao povo, o tal Terceiro Estado. O povo era obrigado a pagar impostos para além das grandes privações a que estava sujeito. No que diz respeito à burguesia era um grupo longe do poder político e não possuía os privilégios associados à nobreza, todavia detinha um enorme poder económico visto que estava, essencialmente, associada às actividades mercantis e financeiras. A vigência do Antigo Regime caracterizou-se por existir uma baixa mobilidade social, contudo à medida que os burgueses iam enriquecendo, ao tornarem-se mais influentes tentavam furar a "barreira do nascimento" para entrar nas ordens privilegiadas. Com o crescendo e ascensão da elite burguesa a nobreza sentia-se ameaçada, uma vez que rivalizava com ela em poder económico e notoriedade cultural. Ocupavam-se com as seguintes profissões: financeiros, comerciantes, armadores de navios, proprietários de prédios e terras, donos de manufacturas, oficial de justiça, advogados, professor, médico, etc.
Releva esclarecer que a preponderância crescente da burguesia ligou-se ao desenvolvimento do aparelho administrativo dos Estados Monárquicos, nomeadamente, deveu-se à expansão das actividades comerciais e financeiras. Durante o Antigo Regime, a burguesia mercantilista multiplicou-se com a extensão do comércio colonial e das actividades bancárias.
Retomando o Século XXI: Enerva-me uma professora universitária utilizar palavras antiquadas. Não é motivante ouvir ou ler arcaísmos. Não sei qual "burguesia do teletrabalho" esta senhora, que ainda por cima é professora, se refere. Queria que todos estivessem em lay-off? Para sua informação, o "burguês do teletrabalho" que está no sector privado continuou a pagar os impostos do trabalho para a máquina do Estado ter liquidez. Ou acha que o seu salário de funcionária de uma universidade pública é pago com a carteira de quem?
Bem sei que também se inclui na "burguesia do teletrabalho" que segundo diz não perdeu rendimentos e que pode bem pagar um imposto extra. Ora não sei como foi feito o seu regime de teletrabalho, se foi do género estar de perna esticada na chaise-longue — burguês que é burguês tem um sofá deste género na sala de estar — a ouvir em loop os comentários na televisão de Francisco Louçã ou a ler os seus livros com temas sempre interessantes, pelo menos para esta Senhora Professora que não deve prescindir de beber todas as palavras dele de manhã à noite.
O que eu sei é que muitas pessoas com o sistema de teletrabalho aumentaram as despesas fixas da casa (sem nenhuma compensação), trabalham de manhã até a lua se fartar de espreitar à janela — quem tem o privilégio de ter uma janela perto da secretária — para avisar que já é noite cerrada (claro, sem pagamentos de horas extraordinárias). Não estou a dramatizar, pelo contrário.
Era bom que estes "burgueses portugueses" fossem a réplica de Jean de Witt, o burguês holandês do século XVII com uma fabulosa fortuna. Infelizmente, não é o que acontece, não há quantidades generosas de Jean Witt a representar "a burguesia do teletrabalho." Também não seria de descartar a possibilidade de todos pertencermos às famílias burguesas mais célebres e poderosas dos séculos XV e XVI: os italianos Médicis e os alemães Fugger, por exemplo.
De regresso à fita do tempo do Antigo Regime: a burguesia em Portugal pouco se desenvolveu devido aos interesses coloniais da nobreza e à endiabrada inquisição. Todavia, para além da centralização do poder o Rei D. José I adoptou uma nova política económica executada com sucesso pelo seu primeiro-ministro Marquês de Pombal que consistia no mercantilismo com o auxílio de medidas proteccionistas¹ permitiu a promoção da alta burguesia mercantil, que passou a ser conhecida por Nova Burguesia Pombalina, pois era protegida pelo Marquês de Pombal (precisava dela para implementar a política económica) e assim associou-a aos monopólios, participando nas grandes companhias comerciais ligadas ao comércio com o Brasil, fortalecendo de certa maneira o poder económico desta ordem. Uma das consequências foi a tão desejada ascensão à condição de nobres muitos destes "burgueses pombalinos" através do casamento quer da atribuição de títulos. O princípio do fim do Antigo Regime foi patrocinado com a nobilização da burguesia abrindo a porta à mobilidade social².
Definitivamente no século XXI: sabendo como o ensino português se caracteriza, principalmente o universitário, em que não ensinam a pensar, instigam a adoptar o pensamento do professor da cadeira, quem não gosta dos acampamentos promovidos pelo Bloco de Esquerda e o convívio muito específico que a festa do Avante dinamiza, torna-se insuportável assimilar esta dialéctica retrógrada assumida desta professora e de tantos outros que teimam a ser convidados constantemente para entrevistas, para comentadores em programas de televisão. Eu pelo menos não sou sádica, nem masoquista.
A intelectualidade que recusa o progresso indigna-me, depois têm sempre tempo de antena estes aforismos decadentes que parecem maçãs com mossa. Estas maçãs retiradas as mossas fazemos um bolo, o que fazemos com estes aforismos decadentes?
Com tom depreciativo aborda os trabalhadores em teletrabalho que para a Senhora são uns preguiçosos, está a ver-se ao espelho acompanhada com a sua grupeta, por isso, têm de ser castigados com um imposto extraordinário retirando parte do salário para pagar a crise; no fundo é uma luta de classes onde o "burguês do teletrabalho" é o capitalista que enriquece (?!), em que é preciso "arrancar todo o capital das mãos"³ destes malvados portugueses em teletrabalho, pois são os grandes culpados da perda de rendimentos que os portugueses com outras profissões tiveram com a pandemia Sars-Cov-2. Encarnou o Karl Marx, só pode.
É pena não ter tido uma palavrinha para umas situações que ocorreram em certas câmaras municipais onde se assistiu a uma enorme injustiça: muitos funcionários estiveram em casa com o salário por inteiro sem fazer nada, em que podiam estar com horários desfasados e equipas em espelho. A estes é que a Professora Susana podia ter apontado o dedo destacando que não vergaram a mola nem queimaram os neurónios.
Mas, lá está o "burguês do teletrabalho" é que foi/é a ruína da sociedade portuguesa.
Esteve em teletrabalho, mas deixa-me ser reaccionária a espezinhar estes privilegiados da pandemia que são uns cretinos que deviam lutar contra esta imposição de exercerem uma função laboral que pode ser feita remotamente.
A esquerda radical e/ou conservadora demasiada vezes tem uma postura semelhante ao bullyinģ.
Em súmula é isto: "És traidor da classe burguesa a que pertences, por isso é que para nós, és bem-vindo. Podemos fazer de ti um revolucionário, no entanto, serás sempre burguês."⁴
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¹ o objectivo era manter o equilíbrio da balança comercial através do aumento das exportações e diminuição das importações para proteger os produtos nacionais. Para assim evitar, essencialmente, a saída de metais preciosos do país e existir também grande acumulação de ouro e prata para desta forma o Estado deter maior riqueza;
² A burguesia pombalina ganhando cada vez mais lugares de destaque no sistema/aparelho do Estado seria o rastilho para a revolução liberal portuguesa de 1820;
³ frase retirada de: Karl Marx e Friedrich Engels, Manifesto do Partido Comunista, 1848;
⁴ citação de: Joseph Roth, Fuga Sem Fim