Singularidade da Política Portuguesa: Presidente da República Pensionista
(Texto escrito em Dezembro de 2015)
"(...) os pequenos gestos podem ter tanto ou mais impacto que os grandes discursos."
Augusto Cury, O Vendedor de Sonhos - O Chamamento
Hoje o dia está soalheiro com um incomodativo ventinho levante que contrasta com a triste e inadmissível atual realidade política portuguesa: o mui nobre titular do cargo de Presidente da República é pensionista, isto é, recebe a pensão em vez do salário que é atribuído a um ocupante do Palácio de Belém. Os acasos meteorológicos - o incomodativo ventinho levante -, teremos que os aceitar, não temos outro remédio, não mandamos no tempo. E a singularidade da política portuguesa - Cavaco Silva pensionista - devemos ter o mesmo comportamento de ataraxia face às singularidades da meteorologia?
Deve ser caso único na Europa e quiçá no mundo democrático este modo de fazer política activa: ocupando um cargo de soberania, ou seja, o "Presidente da República representa a República Portuguesa, garante a independência nacional, a unidade do Estado e o regular funcionamento das instituições democráticas e é, por inerência, Comandante Supremo das Forças Armadas" [Constituição da República] e ser-se pensionista.
Portugal tem um Presidente da República pensionista porque as circunstâncias da estrutura política favoreceram-no a ter a liberdade de escolha e optar por ficar a receber a reforma em detrimento do salário de Presidente da República. Houve em tempos que era possível acumular a remuneração e as pensões e o ilustríssimo Cavaco Silva aproveitou-se dessa benesse, que em boa hora o então Primeiro-Ministro José Sócrates decidiu terminar, foi pena não ter sido mais incisivo para não haver margem para a existência desta singularidade política em Portugal. Se calhar a cólera pelo antigo governante socialista tenha atingido o seu clímax com esta medida que prejudicou os seus interesses pessoais. Nós devíamos ser pioneiros, mas não nisto.
O famoso pensionista teve um comportamento consciente, voluntário e intencional dado que teria de escolher e revelou publicamente que iria cumprir a lei, tendo optado pela reforma. Desta feita, o político Cavaco Silva que é representante de órgãos de soberania demonstrou um descarado desprezo pelos valores morais e éticos, em que os interesses pessoais ficaram à frente dos princípios, na medida em que escolheu a pensão pois é superior à renumeração atribuída ao titular do cargo de Presidente da República Portuguesa.
Bem sei que a moralidade distingue-se da legalidade. Nem tudo o que é moralmente reprovável é juridicamente punível. Há actos e comportamentos que infringem normas morais, mas não infringem nenhuma norma jurídica, como é o caso em análise, a legislação justifica a conduta tomada. O acto e o comportamento de escolher desrespeita normas morais. É certo que as normas morais não são instituídas pelo poder político ou pelo Estado. Diz que se rege pelos valores espirituais (religiosos, éticos, estéticos), porém no comportamento real preferiu seguir os valores materiais, isto é, a pensão de nove mil euros, em vez do salário de seis mil e pouco euros.
Perante esta atitude o nosso mui ilustríssimo titular do cargo de Presidência da República Portuguesa possui uma consciência moral enviesada, pois se em termos simplistas, a consciência moral é a voz da consciência, uma espécie de "juiz interior" como é que a sua consciência moral não o sancionou, não o repreendeu por ter cedido ao pecado da ganância pelo dinheiro? Era uma obrigação moral escolher o salário.
Urge mudar a lei e obrigar quem esteja a ocupar cargos públicos receba o salário que lhes compete no exercício dessas funções a que se candidata. Já que certas criaturas que se movimentam no mundo da política não possuem bom senso seja, portanto, a lei a impor a razoabilidade para acabar de vez com esta tamanha vergonha. Não sei quais os mecanismos que se devem utilizar para que haja esta alteração. Apenas sei que assim é que não pode continuar...
A conduta do político Cavaco Silva à luz das duas principais perspectivas éticas conclui-se o seguinte: não se baseou na Ética Utilitarista de John Stuart-Mill, porque a sua decisão não é moralmente válida ou boa dado que não foi útil para a maioria dos portugueses. Ou seja, inverteu o princípio deste utilitarista e secundarizou o princípio de proporcionar a felicidade à maioria e colocou em primeiro lugar o que iria ser útil aos seus interesses pessoais, em resumo, deixou o altruísmo - para o filósofo Stuart -Mill é o valor fundamental que devia inspirar as açcões das pessoas -, na gaveta e ficou com a reforma para sua plena felicidade. E também não seguiu a Ética Formal de Kant na medida em que optou pela reforma e assim, não cumpriu o dever pelo dever, mas agiu influenciado pelos seus interesses financeiros pessoais, logo a sua acção é empiricamente condicionada e por esta razão não tem validade moral para o filósofo alemão Kant.
O político Cavaco Silva veio trazer menos prestígio à primeira figura da República Portuguesa. Com censurável arrogância tem dito, ao longo destes dois mandatos, com pompa e circunstância: “em exercício das minhas funções...” Quais funções? Na qualidade de pensionista? Infelizmente, não quis servir o país mas servir-se do Estado para atingir o topo de carreira na política portuguesa: ser Presidente da República. Simplesmente quis o melhor dos dois mundos auferir a pensão choruda e ao mesmo tempo estar durante dez anos no dia-a-dia dos noticiários televisivos, nas páginas dos jornais, por um lado. Por outro, nestes dez anos esteve a usufruir de privilégios restritos a cargos de soberania, esteve a influenciar o rumo da política portuguesa de forma provinciana e bacoca. Para o político Cavaco Silva mesmo que se façam apreciações negativas das suas atitudes ou decisões, é irrelevante, o que quer é ter os holofotes apontados a si. Mal ou bem o que importa é falarem dele e da sua família!
Anoiteceu, o pensionista ocupante de um lugar soberano da nossa República Portuguesa permanece; o incomodativo ventinho levante, por momentos desapareceu. Valha-nos isso!
p.s.
1 - Não foi caso único, a então Presidente da Assembleia da República, Assunção Esteves também escolheu levianamente a reforma em vez do salário de segunda figura da República Portuguesa;
2 - Com as funções cessadas Cavaco Silva começa a usufruir das regalias que todos os ex-Presidentes da República Portuguesa beneficiam a saber: seguranças, gabinete com assessora, carro com motorista. Ou seja, mais uns privilégios que saem caros ao contribuinte. Não estará na altura de rever a lei vigente para ser aplicada aos ex-Presidentes da República Portuguesa?