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Perspectivas & Olhares na planície

Perspectivas & Olhares na planície

P&O: Citações Soltas # 8

Quanto do seu tempo perde à espera e/ou na viagem de transportes públicos?

 

"A estação de Shinjuku é enorme. Basta dizer que todos os dias passam por ali cerca de três milhões e meio de pessoas. O Livro Guiness dos Recordes reconhece oficialmente Shinjuku como a estação «mais movimentada no mundo». No seu interior cruzam-se dezenas de linhas. As principais são as linhas Chūō, Sōbū, Yamanote, Saikyō, Shōnan-Shinjuku e Narita Express. As suas plataformas formam uma complexa rede de vias adjacentes; há dezasseis plataformas ao todo. Existem, além disso, duas linhas férreas privadas, Odakyū e Keiō, bem como três linhas de metropolitano, que vêm entroncar na dita rede, de lado, como cabos ligados a uma tomada. É um completo labirinto. Durante as horas e ponta, esse labirinto transforma-se num mar de gente, um mar de espuma e que ruge ferozmente ao rebentar, enquanto avança a  grande velocidade para as entradas e saídas. A torrente formada por quem procura mudar de linha emaranha-se, aqui e ali, dando origem a perigosos remoinhos. Nenhum profeta, por mais poderoso, seria capaz de dividir em dois aquele mar selvagem e turbulento.

Torna-se difícil acreditar que cinco dias por semana, uma vez de manhã e outra à tarde, um número manifestamente insuficiente de empregados da estação seja capaz de controlar, de forma eficiente e sem cometer erros graves, aquela quantidade incrível de pessoas. As situações mais problemáticas registam-se sobretudo nas horas de ponta. Todos correm para os seus empregos ou para um determinado destino. Há sempre um relógio de ponto algures e ninguém se pode dar ao luxo de chegar atrasado. Não admira que não se veja ninguém de bom humor. Ainda estão um bocado ensonados. Sem esquecer que as carruagens, onde seguem como sardinhas em lata, são um tormento para o corpo e lhes deixam os nervos sem franja. Só os mais afortunados conseguem lugar sentados. Tsukuru espantava-se sempre pelo facto de não se produzirem mais distúrbios, por não ocorrerem acidentes graves e sangrentos, envolvendo vítimas mortais. Se aquelas estações e aqueles comboios fossem alvo de algum ataque terrorista por parte de um grupo de fanáticos, sem dúvida que se registaria uma tragédia de proporções inimagináveis. Tanto para os funcionários da estação como para os agentes da polícia e, obviamente, para os passageiros. Apesar disso, a verdade é que continuava a não existir forma de evitar uma catástrofe do género, tendo em conta o pesadelo verificado, na realidade, em Tóquio, na primavera de 1995²ⁿ.

Os funcionários da estação gritam, lançam a toda a hora avisos pelos altifalantes; a melopeia que dá o sinal de saída dos comboios martela incessantemente nos nossos ouvidos e as máquinas e os torniquetes automáticos lêem em silêncio a informação contida em cartões de crédito, bilhetes e passes. Comboios que nunca mais acabam chegam e partem na estação com poucos segundos de intervalo e continuam sistematicamente a regurgitar pessoas, fazendo lembrar gado doméstico paciente e bem treinado, enquanto engolem outras e, impacientes por fechar as suas portas, arrancam e partem rumo à estação seguinte. Se no meio daquele formigueiro humano, ao subir e descer as escadas, alguém for pisado e perder um sapato, nunca mais terá a sorte de o encontrar. Tragado pelas impetuosas areias movediças da hora de ponta, o sapato desaparecerá para todo o sempre. Quanto ao seu dono, seja homem ou mulher, mais não lhe resta senão passar o resto do dia com um só sapato calçado.

No início da década de noventa, quando a economia japonesa se encontrava ainda em plena fase de crescimento económico, um influente jornal norte-americano publicou na primeira página uma fotografia dos passageiros, que captava o instante em que alguns deles se precipitavam, numa manhã de inverno, pelas escadas da estação de Shinjuku (talvez fosse a estação de Tóquio, mas para o efeito é o mesmo), em plena hora de ponta. Como que por mútuo acordo, todos os indivíduos que aparecem na foto olham para baixo, com uma expressão sombria, apagada: parecem sardinhas em lata, e não pessoas. «É possível que o Japão se tenha convertido num país rico», lia-se na legenda da fotografia, «mas, como se pode ver, a maioria destes japoneses cabisbaixos não é propriamente a imagem da felicidade.» A fotografia deu a volta ao mundo.

Tsukuru ignorava se os japoneses eram, de facto, felizes ou infelizes. A verdadeira razão, no entanto, pela qual os passageiros que desciam as escadas da apinhada e caótica estação de Shinjuku olhavam para baixo, todas as manhãs, não se prendia tanto com o seu infortúnio, mas sim com a necessidade de verem o chão que pisavam. Nas grandes estações, às horas de muito movimento, o que importa é não tropeçar nas escadas, não deixar cair um sapato (o que acontece mais vezes do que se pensa). O artigo de jornal não fazia qualquer referência ao contexto em que a fotografia tinha sido tirada. Além do mais, é provável que uma pessoa obrigada a caminhar no meio de um rebanho, enfiada num casaco escuro e de cabeça baixa, consiga manter uma aparência radiosa. Embora, por outro lado, talvez tenha a sua lógica considerar infeliz uma sociedade em que as pessoas não podem ir para o trabalho todas as manhãs apanhando o comboio sem a preocupação de perder um sapato.

Já tinha dado por si a pensar quanto tempo as pessoas perdiam nos transportes, todos os dias, a fim de se deslocarem para os seus empregos. Em média, devia oscilar entre uma hora, uma hora e meia, e estamos apenas a falar da ida. Se um típico funcionário público, casado, com um ou dois filhos, a trabalhar no centro de Tóquio, resolvesse comprar uma casa, teria forçosamente de ir viver para os subúrbios; portanto, para ir trabalhar necessitaria de contar com a tal hora de viagem, que poderia prolongar-se até uma hora e meia. O que significa que, das vinte e quatro horas do dia, perde duas ou três só na viagem de ida e volta para o trabalho. Se tiver sorte, talvez consiga ler um jornal ou um livro de bolso durante a viagem, no comboio a deitar por fora. Ou, por exemplo, no caso de ter um iPod, dar-se ao luxo de escutar sinfonias de Haydn ou ouvir conversas em espanhol para aprender a língua. Outras pessoas fecham os olhos e abandonam-se a reflexões metafísicas. No entanto, poucos estariam de acordo em considerar essas duas ou três horas como tempo útil e proveitoso. Enquanto seres humanos, quanto tempo nos é sonegado? Quanto tempo das nossas vidas se desvanece no decorrer dessas deslocações (provavelmente) desprovidas de significado entre um ponto A e um ponto B? Em que medida tudo isso nos desgasta e provoca um tremendo cansaço físico? "

Haruki Murakami, A Peregrinação do Rapaz Sem Cor

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²ⁿ Na manhã de 20 de março de 1995, em três linhas do metropolitano de Tóquio registou-se um dos mais tristemente trágicos episódios de terrorismo dos nossos dias. No livro Underground, publicado pela Tinta-da-China, Murakami traça um eloquente quadro da relação entre o atentado e a mentalidade japonesa. (N. da T.)