P&O: Citações Soltas # 43
A narrativa dos olhos!
Já leram uma narração sobre olhos como está? Bonita minúncia. Seriam capazes de fazer uma narrativa sobre os vossos olhos ou de alguém que tenha um olhar que vos fascina?
《O mais chamativo do seu rosto eram os olhos incrivelmente despertos, deslumbrantes às vezes pela devoção e fixidez com que conseguiam olhar, como se o que estivessem a ver em cada momento fosse de uma importância extrema, digno não só de se ver como de se estudar detidamente, de se observar de maneira exclusiva, de se aprender para guardar na memória própria cada imagem captada, como uma câmara que não conseguisse confiar no seu mero processo mecânico para o registo do percebido e tivesse de se esforçar muito, pôr a sua parte. Aqueles olhos elogiavam o que contemplavam. Aqueles olhos eram de cor muito clara, mas sem gota de azul, de um castanho tão pálido que à força de palidez adquiria nitidez e brilho, quase da cor de vinho branco quando o vinho não é novo e a luz os iluminava, na sombra ou à noite quase cor de vinagre, olhos de líquido, de rapina muito mais do que de gato, que são os animais que mais admitem essa gama de cores. Mas em compensação os seus olhos não tinham o estatismo ou a perplexidade desses olhares, eram móveis e cintilantes, adornados pelas longas pestanas escuras que amorteciam a rapidez e tensão dos seus deslocamentos contínuos, olhavam com homenagem e fixidez e ao mesmo tempo não perdiam de vista nada do que acontecia na sala ou na rua, como os olhos do espectador de quadros experiente que não precisa de um segundo olhar para saber o que está pintado no fundo do quadro, mas com os seus olhos globalizadores saberia reproduzir a composição nesse instante, bastava vê-la, se também eles soubessem desenhar.》
Javier Marías, Coração Tão Branco