P&O: Citações Soltas #4 Casamento, mulher, homem, relacionamentos
"Eu não estava preparado para o casamento — e quem há aí que esteja preparado para o casamento?... Confiar uma rapariga casta a um rapaz que do amor só conhece o lado sensual e grosseiro, é pior que um crime. É pior que a sífilis. Aquela nódoa entranhada nunca mais se lava. Nunca mais concebemos a mulher senão como instrumento de prazer. Sacrificamo-la e contaminamo-la. Há-os, é certo, que o casamento modifica — mas há-os também que continuam a frequentar os mesmos bordéis. Eu, que um mês antes dormia com uma mulher ordinária, um mês depois, e com a mesma inconsciência, passei a dormir com minha mulher. Mas é só isto? Todas as suas ideias me irritam, todos os seus sentimentos me irritam. Destruí-los seria a minha vontade. Por cobardia ou fraqueza não chego a pronunciar as palavras decisivas e recalco o fantasma que se debate e espera... Eu quero um mundo quanto mais vivo melhor, ela quer um mundo morto. Enche a vida com o Crucificado, e eu reclamo a vida sem dor e amo-a extraordinariamente. Ela constrói o seu sonho sobre cadáveres, que enchem a terra e chegam ao céu. Somos dois seres, um vindo do alto e o outro sabe Deus de que ânsias e de que conflitos, dois seres desconhecidos, que se encontram por acaso e que são anjos ou demónios. Ela quer agradar-me e ao mesmo tempo impor-me as suas ideias e eu tenho o propósito de a fazer descer do céu à terra. Discutir não é possível. Sílvia não sabe ou não quer discutir. Tem a certeza daquele absurdo.
Acresce a isto o fastio de ouvir sempre as mesmas coisas, que são farrapos dum sonho inútil. A mulher é fundamentalmente idealista, mas o seu idealismo é grosseiro, e — diga-se tudo— talvez o casamento seja o mais artificial de todos os nossos artifícios. Só poderão com ele as pessoas religiosas; para as outras é um jugo de ferro. Creio que nenhum homem consegue viver dentro do casamento, senão falseando-o e mentindo. Até nos melhores (ainda que sr não manifeste) o sentimento de prisão é intolerável. Às vezes amam-se, o que não faz ao caso. Dois seres unidos podem amar-se e detestar-se; podem ter a necessidade de se juntar como os lobos com fome se associam para descer ao povoado, e odiarem-se depois de saciados. E o pior ainda... O pior são os nadas em que somos obrigados a pensar todos os dias, perdendo a vida em lutas estéreis que tornam insuportáveis as ligações para toda a vida. Há também mulheres que não discutem nem falam — são as piores. As que se calam são as piores. No casamento o debate é o mesmo. O pior é o silêncio, aquele silêncio carregado de pensamentos, de suspeitas e de dúvidas. E talvez em mim e nela exista também outro sentimento mais complexo e mais imperativo. O casamento com a sua superfície de vulgaridade pertence ao presente e ao passado, é feito de minúcias e de passos que mal se distinguem no escuro. Muitas vezes penso: — Então diz-lhe a verdade. Qual seria a verdade? Seria dizer-lhe que o casamento é uma ficção? Ou dizer-lhe: — Sim, amei-te; agora já te não amo, e não quero ficar amarrado a palavras que perderam o significado. Mas não posso. Mas recuo e minto. Minto sempre. Chego a convencer-me de que sem a mentira o casamento não existe. Não posso falar a verdade à minha mulher, nem responder com verdade:— Para onde vais? — Minto.— Donde vens? — Nem sequer posso dizer-lhe o que penso desvendando a minha alma. Minto sempre. E suspeito que ela tem a intuição de que lhe minto... Para lhe falar a verdade era necessário que as nossas almas fossem iluminadas pela mesma luz. Assim só a mentira odiosa tem razão de ser na vida comum. (Eu digo a mim mesmo que lhe minto por piedade, mas o que é certo é que lhe minto mais não me incomodar do que para não a incomodar a ela.) Então rompe — acabemos com isto! — Hei-de subjugar-te porque não quero deixar subjugar-me. Tens de compreender que só podemos viver como associados, resolvendo por uma vez este problema. É irremediável. E o que se dá connosco, dá-se talvez com todos os casados: vivem num acordo tácito de mentiras ou transformam a vida num perpétuo inferno.
Este artifício que nos faz mentir, ser hipócritas, pensar na morte um do outro, viver amarrados a interesses tolerando-nos e até odiando-nos, não tem razão de existir, e é quase sempre em simulacro. Passado pouco tempo de casados, cada um segue o seu caminho interior, representando para os filhos a comédia da união. Ou ele a deprava, o que sucede a maior parte das vezes, ou ele lhe mente e ela lhe mente e acabam ambos podres de infâmia. Ouço cada vez mais alto o fantasma que teima, mesmo depois de sepultado, em ressuscitar em cada alma— e me aconselha a reduzi-la a um reflexo! Reduzir a mulher a um reflexo, suponho que é a ambição de todo o ente superior que é o homem. Passados alguns anos de casado, o que deseja ele da mulher, depois que lhe deu os filhos? Que se apague, que lhe trate da casa, que não seja um embaraço e se resigne. Mais tarde pode até achar bem que se entregue à religião e ao padre, para que o deixe mais livre e se contente com a vida inferior que lhe compete. Porque o ente superior exige, depois que está farto, que a mulher seja casta. E mesmo que a desleixe quer que lhe seja fiel. Há ainda a considerar o que por aí se chama a amizade. Morreu o amor— ficou a amizade. O que fica quase sempre é o hábito fétido de dormirmos juntos há vinte anos na mesma cama. Nela só existe uma ideia e um sentimento (antes um sentimento), o seu amor e a sua religião confundidos. O resto ninharias — os meus negócios e não lhes dá importância, os meus amigos e detesta-os. E isto pesa-me como um bloco. Não compreendi que as mulheres como ela esperam apaixonadamente do homem, não um prazer efémero mas uma revelação que lhes desvende a alma que preferiram e a sua própria alma.
— As mulheres são estúpidas!— dizia de mim para mim.
E não são. O que pensam é duma maneira diferente, encarando a vida por outro prisma e discutindo com outra lógica. Como todas as coisas verdadeiramente belas, para as entender é preciso amá-las. E eu não estava à altura desse ser vivo e apaixonado.
Se Sílvia fosse uma mulher insignificante, tinha-se subordinado e acabava amarrotada e nula. Gastava-se pouco até perder a personalidade. É o que sucede quando o marido adquire um grande ascendente sobre a mulher: ao fim de alguns anos ela não passa de um ser sem consistência. Sim.— Sim.— Não. — Não... — Mas Sílvia tem maior individualidade, mais paixão, e mais capacidade de sonho que eu. Só me restava o hábito, que pouco e pouco deita tentáculos para me absorver.— Sujeita-te..."
O pobre de pedir, Raul Brandão pp 121-125