Mentir a todo o custo: sim ou não?
"Se tudo o que há é mentira,
É mentira tudo o que há.
De nada nada se tira,
A nada nada se dá. (...)"
Fernando Pessoa
A propósito do dia um de Abril ser o dia da mentira lanço uma pergunta: será que devemos dizer sempre a verdade independentemente do preço a pagar por esta honestidade?
O filósofo Immanuel Kant defendia que não se deve mentir mesmo se for o caso de ser justificado. Achava que não era viável uma ordem moral numa sociedade onde se incentiva e permite a mentira.
É aceitável pensar o seguinte: na teoria o Kant pode estar certo, porém na prática às vezes temos de mentir.
E kant ainda vai mais longe: se todos temos o direito a mentir, será sempre difícil confiar uns nos outros. Sendo a confiança uma pedra basilar, sem ela não podemos criar uma sociedade.
Por outro lado, é também aceitável pensar que: é impossível não mentir, todos o fazemos inconscientemente ao repetirmos ideais que estão instituídas em sociedade, e em último caso no seio familiar, e que continuamos a sustentar a sua presença de geração em geração. Os nossos educadores, refiro-me à nossa mãe e ao nosso pai, educam-nos para não mentir, aceitando a norma moral que nos diz: "que não devemos mentir", depois vêm falar-nos da ressurreição de Cristo após três dias no sono eterno.
Não acharão que a Páscoa será uma grande mentira? Quem diz a Páscoa, também pode dizer o Natal.
É plausível olhar para a mentira como uma necessidade. Infelizmente, as mentiras são o escudo para evitar mais discussões, problemas familiares e de Estado.
(É uma constatação que não aprecio, contudo sem mentiras, dificilmente os cidadãos votavam em certos e determinados partidos políticos, habilmente os políticos promovem esta forma de estar para manipular a opinião pública e assim obterem o maior número de votos.)
A ética Kantiana refere-nos como devemos comportar sempre, independentemente das situações em que nos encontremos. No fundo diz-nos como devemos agir, ou seja, devemos cumprir o dever (as normas morais) por dever sem pensar nas consequências ou sem ter outro motivo a influenciar o respeito absoluto pelo dever.
Por imperativo da minha personalidade "chata" são mais as vezes que pauto a minha conduta mais ou menos influenciada pelo pensamento de Kant: devemos sempre cumprir o dever por dever, isto é, cumprir o que é devido pelo respeito pelo dever, em toda e qualquer circunstância para atingir a lei universal/moral, originando o imperativo categórico e moral. Recorrendo a um adágio popular para facilitar a rápida compreensão o imperativo categórico e formal é o mesmo que dizer: " Não faças aos outros o que não queres que te façam a ti."
O meu lema de vida passa muito por este adágio, apesar de nem sempre conseguir segui-lo a cem por cento. As pessoas preferem ouvir meias verdades. É mais reconfortante. É mais fácil mentir a nós próprios do que ver a realidade tal como ela se apresenta justificada por vários factos objectivos. A minha reacção passa por olhar para esta frustração, como se olha para uma rosa, é bela mas não deixa de ter os seus espinhos.
Porém, as outras vezes que opto por agir bem todavia não é necessariamente agir de forma moralmente válida. Simplificando: cumpro o que é devido, pois não mentir foi um meio para evitar situações desagradáveis, assim cumpro o dever por amor, por compaixão, por medo, por interesse.
Desta forma, como não estou a agir de forma puramente racional ao cumprir o dever dando importância ao que me pode acontecer negativamente, não atinjo a validade moral que Kant defende: "Não devo mentir porque é meu dever não mentir"; agir de uma forma puramente racional e desinteressada, honrar o respeito pelo imperativo categórico que é a lei moral que não admite que o cumprimento do dever seja um meio para outra coisa qualquer (expectativa de recompensa ou castigo, reprovação ou aprovação pelos outros...), antes exige que seja um fim em si mesmo e não estar sujeito aos seus interesses e emoções.
Para ser honesta, enganarmo-nos a nós próprios, por assim dizer, pode ser, ou é uma mentira muito humana. Temos de fazer o exercício de admissão. Admitirmos que para atingirmos certos e determinados objectivos, que inclusive pode ser para não nos magoar ou por termos uma auto-estima razoável, somos capazes de encetar várias voltas para chegar até aos ditos objectivos. A racionalidade, a razão pura, não se consegue no primeiro momento, eu acho que não, as inclinações sensíveis (a compaixão, o orgulho, o medo...) influenciam no imediato a decisão da vontade de fazer algo por outrem. Não somos desprovidos de emoções, apesar de numa outra fase podermos ser mais racionais.
O rigor e a austeridade da ética de Kant, na verdade, é excessiva. No fim de contas nós somos humanos, como tal será possível seres humanos que não são puramente racionais poderem agir integralmente de forma racional? Não é completamente impossível, todavia não se consegue a perfeição moral. Pois a perfeição moral não é própria dos homens. Kant acha que é possível, por entender que é os que nos distingue do reino animal é precisamente a razão. Ora a razão é quase sempre seduzida pela emoção, mesmo quando agimos o mais racional possível há sempre um sentimento que influencia a nossa acção ou vontade.
Voltando à mentira. Eu não sou apologista da mentira. Não reajo bem à mentira. E quando são mentiras que escondem comportamentos desviantes, atitudes que prejudicam outrem, as falhas de carácter, fico completamente possessa.
(As "mentirinhas" que por vezes dizemos quando não queremos que saibam exactamente a marca do perfume que usamos ou quando perguntam incessantemente, quando nos vêem num sitio qualquer e querem saber a razão, inventamos qualquer mentira sem importância para nos livrar-nos do interrogatório. Estas não contam.)
Reconheço que há quem minta com a mesma rapidez com que se dá o processo de entrada e saída do ar no nosso sistema respiratório. Muitos defendem que é instintivo, que temos necessidade de mentir, de ocultar de dizer meias-verdades.
Alguns acham que a mentira é a sobrevivência pura, desculpabilizam a mentira radicalmente por acreditarem que é melhor uma mentira que te faz feliz do que uma verdade que te amargura a vida. É um argumento insano, pelo menos para mim, para esconder traições. Os pérfidos, ou pérfidas, que acham normal as traições com frequência respondem à pergunta com outra pergunta: como seria se as traições não fossem escondidas? E o que dizer do argumento: a mentira protege os casais. Tenho a percepção que há casais que sobrevivem graças à mentira. Respeito. No entanto, custa-me tolerar que a mentira seja a chave para o funcionamento das diversas tipologias de relações que podemos manter com o nosso semelhante.
A "chave da mentira" pode dissuadir "guerras", ainda assim, nunca resultará na dignificação da condição humana.
Tenho mais carinho pela "chave da verdade", o preço pode ser alto, é certo, mas é preciso espelhar a verdade para envergonhar a mentira mais vezes do que é costume.