Autárquicas 2021: o argumento ad terrorem
Parte I
"(...) a câmara, essa, é a cidade não a cidade da câmara, espero ter sido suficientemente claro, senhor ministro."
José Saramago, O Ensaio sobre a Lucidez
As eleições autárquicas. Serão? Se não existissem debates televisivos com os putativos candidatos à presidência das câmaras municipais das capitais de distrito acharia que estava a decorrer a campanha para a eleição de um primeiro-ministro. Assim, cria a impressão que o António Costa é candidato a todas as câmaras municipais e assembleias de freguesia mais relevantes e com maior número de população. A Comissão Nacional de Eleições, sob a égide do Governo em exercício, desligou o aparelho auditivo, logo se já ouvia mal, agora , então, não ouve rigorosamente nada dos discursos do seu "patrão" que demonstram um flagrante envolvimento abusivo na campanha autárquica.
Diz que é enquanto Secretário-Geral do PS que calcorreia Portugal de Norte a Sul e Sul a Norte com a bazuca na ponta da língua para que votem nos candidatos do PS. Nestes dias de propaganda insana deste alguém, é oportuno saber quantas horas tem gastado na função de Primeiro-Ministro?
A participação activa de um primeiro-ministro numa campanha autárquica é sempre promiscua, por mais que digam que estão vestidos com o fato de líder do partido, que têm a obrigação de se solidarizarem com os autarcas do partido que concorrem no poder local. Todos sem excepção acabam por entrar nessas águas lamacentas, que por sinal, movimentam-se com muita agilidade, pois é uma grande oportunidade de mandar no curso das eleições, escolhendo de modo tendencioso as temáticas que favorecem a acção governativa do Chefe do Governo. Mediaticamente, é excepcional (re)ganhar popularidade para o seu Governo e para o próprio: aparece todos os dias na televisão no convívio das pessoas a falar o que elas querem ouvir, facilitando o trabalho do próprio, uma vez que são especializados em vender ilusões, no deturpar a realidade com versões de meias-verdades, quando não estão a mentir descaradamente. Fazem e dizem o que lhes permitem fazer e dizer. Portanto, a culpa é nossa, não deles! Gostamos de ser enganados e vendemo-nos por tuta e meia.
Se todos os primeiros-ministros seguem esta via de misturar leviana e confusamente as funções de estado com a função de topo no partido, o António Costa tem sido exemplar, no sentido de ser um vergonhoso exemplo que está a ser para o regular funcionamento de uma eleição que se destina a eleger os diferentes órgãos autárquicos; na qual se pretende ouvir quais os programas eleitorais que têm para apresentar ao seu munícipe/freguês.
As Autárquicas 2021 vão ficar e fazer história por causa de alguém. Esse alguém tem nome, é o António Costa.
Impressiona o despudor no recurso ao constante argumento ad terrorem: Votem no PS. Os outros não sabem o que é o Plano de Recuperação e Resiliência! Nós somos a Bazuca, sem o PS não há bazuca para ninguém. Sem o PS a bazuca vai ser um caos.
É intolerável esta chantagem às claras. Fazendo acreditar os mais incautos nas consequências nefastas que virão se não escolherem os autarcas socialistas.
Vivemos no jugo de uma sociopatia emanada por estes governantes: o dinheiro da Bazuca para nos controlar, para sermos subordinados e temos de nos adaptar a eles; desacreditam os outros pois o PS é o único que consegue resolver o que está errado; culpa amiúde os cidadãos daquilo que só eles originaram, ou seja, estamos a enfrentar uma espécie de relação psicologicamente castradora.
Releva referir que os partidos na oposição não têm obrigações governativas, as suas participações nas campanhas eleitorais a nível local não são condenáveis, pelo contrário é um meio para conhecer as assimetrias, os problemas que dependem da intervenção do governo central para serem resolvidos e assim construir uma alternativa programática para umas futuras eleições legislativas.
É imperioso mudar a forma como se misturam sem freio ético o partido do governo nas eleições autárquicas. Como?
Sabendo que temos uma democracia pluripartidária, em que é o presidente do partido (no caso do PSD e CDS) ou o secretário-geral (no PS) a ser empossado primeiro-ministro, ganhando as eleições legislativas ou aquele que obtenha apoio parlamentar maioritário para formar Governo. Assim que se tornasse Chefe de Governo, deixaria o cargo de líder partidário durante a legislatura, participando na gestão do partido como militante com funções de secretária. Afastando-se totalmente da actividade partidária e concentrando-se na função que aceitou estar durante quatro anos: responsável pela política geral de Portugal e gestor da administração pública/Estado.
Os primeiros-ministros não precisam do palanque das autárquicas para fazer tanta propaganda aos seus dotes governativos, quando têm sempre o foco em si com as constantes inaugurações, apresentações de projectos de investimento, entrevistas em todos os órgãos de comunicação social, conferências de imprensa para anunciar a medida milagrosa que vai salvar a nação.
Esta solução traria uma democracia melhor, não haveria uma usurpação da missão e conceito destas eleições, iria haver uma discussão verdadeira das problemáticas que prejudicam a vida diária das pessoas (habitação, mobilidade, emprego, despovoamento...), a competição seria em pé de igualdade, apesar do líder substituo do partido que Governa tentaria sempre influenciar enviesadamente o seu eleitorado local, porém não seria o primeiro-ministro do país que estava a fazer esse trabalho.
É utópica esta minha ideia. Continua-se a premiar esta vida dupla que intervala quando lhes apetece.
O actual primeiro-ministro consegue ser num comício os dois cargos que ocupa de cinco em cinco minutos, apesar de quando questionado se não está a usar a sua posição privilegiada de governante, responde de pronto: estive aqui na qualidade de Secretário-Geral do Partido Socialista.
"Os anos passam, um após outro, e nada melhora. Tudo quanto fazemos é discutir, debater e procrastinar. Qualquer ideia decente vai sendo alterada até estar já reduzida à ineficácia (...)"
Kazuo Ishiguro, Os despojos do dia