A minha Estirpe e a dela
O que é a estirpe? Recorrendo ao dicionário do costume aparece-nos os seguintes sinónimos: “ascendência, espécie, grupo, progénie, raiz, tipo”.
Miguel Cervantes no seu Dom Quixote associa estirpe à virtude: “A estirpe herda-se e a virtude conquista-se; e a virtude vale por si só o que a estirpe não vale”. Tendo a concordar com a sua perspectiva: somos herdeiros da estirpe, porém o que adianta termos ascendência distinta, achamos nós, se depois temos comportamentos desviantes ou atitudes deselegantes. Sem virtude no carácter, ou seja, brio, hombridade, bondade, retidão, ética,… Não há estirpe ilustre, pensamos nós que pertencemos a ela, que nos salve do desrespeito e do desmerecimento por parte do nosso semelhante que caminha na mesma sociedade connosco.
No passado mês de Julho foi inaugurado o empreendimento turístico Herdade dos Delgados - Dark Sky View Hotel & Spa, em Mourão (Évora). Todavia, inesperadamente o protagonista da inauguração não foi a abertura de um hotel de quatro estrelas com vista para o Lago de Alqueva, mas antes uma das anfitriãs: a Cinha Jardim que pertencia à comitiva de “socialites” presente na cerimónia oficial de abertura do “Dark Sky View Hotel & Spa”. O protagonista ficou para segundo plano, quando a antagonista decidiu destacar-se com esta sua opinião desafinada: o “aparecimento de pessoas de outras estirpes sociais, televisões e revistas” são as responsáveis por divulgarem “a beleza que no fundo já existia” no Alentejo.
[Esta educativa resposta surgiu no decorrer de uma interpelação feita pela Rádio Campanário: “Se o Alentejo estava na moda?”]
A Cinha Jardim – o seu nome profissional (?!) – pertence ao tal grupo social fútil do mundo das revistas cor de rosa em que todos os seus elementos têm comportamentos culturais padronizados, tipo código de conduta, que permite que sejam identificados a léguas por outros grupos sociais. Estes elementos são as tais personagens que não negam a linhagem douta em “finger food” – no croquete e no rissol, claro está –, mas mesmo assim acham que quem não pertence à estirpe deles tem de pedir desculpa por existir ou tem de pedir licença para ocupar o espaço que é de todos e que ao mesmo tempo não é de ninguém.
Acontece que a Cinha Jardim ao afirmar que o que contribuiu para o Alentejo estar mais na “berra” foi o esforço das “pessoas de outras estirpes sociais, televisões e revistas” está a potenciar o etnocentrismo cultural, fenómeno cultural que é apanágio do grupo dos colunáveis desinteressantes. Isto é, há uma enorme tendência dos membros da “socialite” terem a presunção da superioridade da sua própria cultura face aos demais cidadãos.
Neste caso, a Cinha Jardim dá a entender que se não fosse a suposta estirpe sofisticada e esteta a que ela pertence (?!) a promover e atribuir civilidade ao Alentejo, estaríamos mergulhados no marasmo da parolice composta por gente nada cortês e com espírito tacanho.
Se é para alargar os nossos horizontes, então fico grata que a sua estirpe interrompa os seus imensos afazeres e venha ao Alentejo dar mais colorido cultural, de plástico, evidentemente!! Santa ignorância, haja paciência para tamanhas barbaridades decoradas e debitadas em meia dúzia de segundos.
É uma estirpe que desvaloriza o facto de a par da cultura dominante existe a cultura dominada, também conhecida por subcultura. A sua presunção leva-os a não respeitar e asfixiar determinadas especificidades que caracterizam os Alentejanos: os nossos usos e costumes culturais, os nossos regionalismos no modo de vestir, de falar e particularidades gastronómicas. Sabemos que a nossa subcultura (como também as subculturas beirã, algarvia, por exemplo) tem pouca autonomia dado o domínio da cultura dominante. Uma vez que deve predominar a ordem social e para que tal aconteça pressupõe uma articulação saudável de todas as subculturas com a cultura dominante. Porém, não há necessidade de subjugar e humilhar nada nem ninguém.
Todos temos vários papéis sociais para desempenhar e cada papel social corresponde a uma posição social e por sua vez o conjunto de várias posições sociais dá origem ao estatuto social. Sabendo que o estatuto social é aquilo que a pessoa espera que a sociedade reconheça das várias posições que ela ocupa; a Cinha Jardim na posição de acumuladora-de-presenças-em-festas-de-espetadas-de-fruta-e-Detox-e-de-programas-televisivos-descartáveis acreditará que o comum mortal lhe reconheça valor capaz de lhe atribuir sapiência naquilo que diz aos microfones de uma rádio local. Esta “socialite” e outras da sua estirpe não perceberam uma das principais características da Socialização que é o facto de ser um processo dinâmico por pressupor adaptações constantes e permanentes da pessoa à sua sociedade.
Como a sociedade está em contínua transformação temos de acomodar-nos ao tempo presente, não aos aspectos sui generis da sociedade em que a dita “socialite” estava inserida há quarenta anos. Muitos terão memória curta ou revelar desconhecimento dos factos da nossa história, mas a mim não me apanham a fazer a curva em contramão.
“A estirpe não transforma os indivíduos em nobres, mas os indivíduos dão nobreza à estirpe” (Dante) e, por isso, sinceramente não me senti ofendida com esta opinião que assinala a mentalidade da subcultura das aparências e do dinheiro fácil da estirpe da Cinha Jardim e de outros pareceres que se vão somando e derretendo com a cálida soalheira alentejana.
Leio e esboço um sorriso irónico para as figurinhas tristes que estas “socialites” à portuguesa têm de fazer para que à noite os seus jantares sejam uma vichyssoise desenxabida.