"É que nada há no homem mais delicado, mais melindroso do que as ilusões: e são as nossas ilusões o que a razão crítica, discutindo o passado, ofende sobretudo em nós.
Antena de Quental, Causas da Decadência dos Povos Peninsulares nos Últimos Três Séculos
Eu tenho um passatempo que pode surpreender até alguém que não se surpreende com nenhuma paranóia humana que, basicamente, é ler discursos de políticos e, não só, preparados para datas comemorativas simbólicas para Portugal. Desta feita, fui ler o premeditado texto de Marcelo Rebelo de Sousa para o dia de Portugal.
O discurso do Presidente da República para a celebração do 10 de Junho foi uma caixinha de recados, como é seu apanágio.
Não demorou muitas palavras — umas sessenta e uma palavras, contei as ditas – para o Presidente Marcelo anunciar a extraordinária boa-nova aos portugueses: "No fim, ou quase no fim, de uma pandemia tão longa e dolorosa."
Este ser humano tem sede de protagonismo, por causa desse defeito de carácter lança o marmoto, alagando a terra para em seguida surgir a limpar a lama e assim ficar como o benfeitor capaz de resolver o caos instalado. É sempre muito previsível. As suas acções e as suas palavras são um conjunto de rotinas instituídas sem a mínima intenção de surpreender. A popularidade que tem, leva a trilhar este caminho rotineiro.
Para além da novidade, seguiu-se um listar de recados que discurso após discurso tende a repetir incessantemente: estratégia para usufruto e rentabilização do oceano; "agir em conjunto, com organização, transparência, eficácia, responsabilidade"; concordância política no aproveitamento dos recursos, nomeadamente, usá-los bem e com qualidade sem privilegiar ninguém mas o colectivo; "não desperdiçarmos o acicate dos fundos que nos podem ajudar, evitando deles fazer, em pequeno e por curtos anos, o que fizemos, tantas vezes na nossa História, com o ouro, com as especiarias, com a prata, mais perto de nós, com alguns dos dinheiros comunitários"; ter na Diáspora uma estratégia para o ensino e valorização da língua portuguesa; o processo de votação para as diversas eleições seja inclusivo, menos burocrático para que a participação seja menos residual; mudar a mentalidade intolerante e depreciativa sobre o imigrante e emigrante; apetrechar com mais e melhores recursos humanos, materiais e salariais o nosso sistema nacional de saúde.
Todos estes recados, o Marcelo sabe mais do que ninguém, que este Governo liderado pelo António Costa não é o ideal para os colocar em prática. Sabe disso desde sempre. Neste segundo mandato fará o indispensável para provar e elucidar que enquanto António Costa for primeiro-ministro nunca fará as reformas estruturais no país, nunca deixará de promover a teia de interesses pessoais e da ala partidária que o sustenta, os seus sequazes.
Este governo nunca serviu para o desenvolvimento de Portugal, numa primeira fase, serviu/serve os interesses do Presidente da República para ter a fama que manda "despedir" os ministros com mais aselhices com a bênção fingida do Primeiro-Ministro que lhe dá ouvidos quando lhe interessa, nomeadamente, quando o foco das aselhices começam a atingir a imagem governativa de António Costa. A relação entre os dois tem sido um jogo de cooperação de forma a beliscar o menos possível a aceitação dos portugueses. Usaram-se mutuamente cada um com a sua própria conveniência, mas que no fundo alimentaram-se da manha de um e do outro sem nunca haver atropelos significativos. Esta ginga terminou com o primeiro mandato, agora Marcelo Rebelo de Sousa está a ensaiar outra postura intervencionista caracterizada pela política de terra queimada, vai fazer o que estiver ao seu alcance para beneficiar a sua estratégia: afastar este Governo e ajudar o PSD a voltar a governar Portugal.
Estes momentos comemorativos incentivam ao discurso hiperbólico, contribuindo nefastamente para o egocentrismo de uma nação. Exacerbados elogios que mais não são momentos de vaidade e imodéstia ridícula em horário nobre.
A sua presidência tem sido sempre pautada pelo alarde do exibicionismo de sermos os melhores da Europa e no Mundo. A vanglória tem o efeito contrário: como nos sentimos inferiores, achamos que este insistir em demonstrar a nossa superioridade nos torna respeitados e valorizados pelos nossos semelhantes estrangeiros. Somos bons, porém devemos ter sempre os pés assentes na terra, não temos asas para estarmos em altos voos de ilusões: quem tem asas são os pássaros, algo que os representantes da nossa República tendem a esquecer.
O momento de rasgo de lucidez foi quando disse que: "agradecermos a esses outros irmãos de Humanidade, que nos são tão úteis para o que queremos pronto, mas não pelas nossas mãos, aquilo que realizam em Portugal". Respeito, tolerância e compaixão para com aqueles que estão em Portugal a fazer o que muitos portugueses não querem, todavia o empresário valoriza indignamente as condições de trabalho e salariais para potenciar a diminuição dos custos fixos da actividade laboral da empresa; ao mesmo tempo que incentiva as empresas de trabalho temporário especializadas em trabalho escravo.
(Uma ressalva: há portugueses do sexo masculino que não aceitam trabalhar na agricultura pois não é com o salário mínimo que se sustenta uma família; ainda conseguimos encontrar mulheres portuguesas com baixas qualificações académicas a trabalhar na agricultura, pois é um auxílio para o orçamento familiar, não o principal.)
"Que se desenganem os profetas da nossa decadência ou da nossa finitude." A indirecta deve ser para muitos indivíduos, como pela inexistência de citações de escritores, esta afirmação podia ser também dirigida ao Antero de Quental, em que pensou e escreveu sobre decadência de Portugal (e da Espanha, ou seja, os povos da Península Ibérica). Por isso, não é de agora esse vaticínio, o escritor Antero de Quental escreveu no seu discurso "Causas da Decadência dos Povos Peninsulares nos últimos três séculos" que a causa da nossa decadência era sobretudo moral e política, porém podia ser outra: as conquistas ultramarinas que nos lesaram no plano económico. Vincou assim: "Há dois séculos que os livros, as tradições e a memória dos homens andam cheios dessa epopeia guerreira, que os povos Peninsulares, atravessando oceanos desconhecidos, deixaram escrita por todas as partes do mundo. Embalaram-nos com essas histórias: atacá-las é quase um sacrilégio. E todavia esse brilhante poema em acção foi uma das maiores causas da nossa decadência. (...) um erro económico não é necessariamente uma vergonha nacional. Do ponto de vista heróico, quem pode negá-lo? Foi esse movimento das conquistas espanholas e portuguesas um relâmpago brilhante (...). A desgraça é que esse espírito guerreiro estava deslocado nos tempos modernos: as nações modernas estão condenadas a não fazerem poesia, mas ciência. Quem domina não é já a musa heróica da epopeia; é a economia política (...)."
Vale mesmo a pena ler, no meu caso reler, este discurso sagaz e clarividente, continuando: "Quisemos refazer os tempos heróicos da idade moderna: enganámo-nos; não era possível; caímos. Qual é, com efeito, o espírito da idade moderna? É o espírito de trabalho e de indústria; a riqueza e a vida das nações têm de se tirar da actividade produtora, e não já da guerra estetilizadora. O que sai da guerra não só acaba cedo, mas é além disso um capital morto, consumido sem resultado."
Era com estas palavras de Antero de Quental que eu esperava que a intervenção escrita pelo punho de Marcelo Rebelo de Sousa tivesse terminado: "Que é pois necessário para readquirirmos o nosso lugar na civilização? Para entrarmos outra vez na comunhão da Europa culta? É necessário um esforço viril, um esforço supremo: quebrar resolutamente com o passado. Respeitemos a memória dos nossos avós; memoremos piedosamente os actos deles; mas não os imitemos. Não sejamos, à luz do século XIX, espectros a que dá uma vida emprestada o espírito do século XVI."
Teria sido uma homenagem interessante no século XXI a alguém que soube ler a essência do ser português, que desgraçamente perdura: a nossa decadência em não quebrar com o passado para conquistar o futuro na senda de afirmar a crença no progresso.
Portugal adormeceu profundamente.
O Marcelo Rebelo de Sousa sabe que o Governo de António Costa não serve para acordar este Portugal que adormeceu.
*************
Quem tiver interesse em ler o discurso na íntegra lido a 10 de Junho de 2021: está aqui.