A "Cabana junto à praia" de pernas para o ar
"Porque as opiniões e os relatos especiais, as colunas e as glosas pareciam inúteis, nada mais deixando na cabeça do leitor além de um zumbido de vespas. Soava-lhe altíssimo este som vindo da página da 《cultura》, onde nada podia aparecer que não expressasse uma opinião sobre o assunto. De facto sabia que a crítica era uma arte em si (...)"
Peter Handke, A tarde de um escritor.
"(...) o tempo é um mestre-de-cerimónias que sempre acaba por nos pôr no lugar que nos compete, vamos avançado, parando e recuando às ordens dele, o nosso erro é imaginar que podemos trocar-lhe as voltas."
José Saramago, A Caverna
O aquecedor solar de verão alentejano custou a aquecer, como deixou de ser preguiçoso, tem nos oferecido dias abrasadores para terminar o mês dos Santos Populares com a transpiração em alta.
Se colocar as sardinhas e os pimentões no chão do terraço assam não por ter brasas, mas a tijoleira estar em brasa com o calor emanado do aquecedor amarelo e redondo com raios.
Não é inveja, e se for é da benigna: é pena por não ter e que fazia-me um jeitaço aqui a piscina da quinta que todos os verões o José Cid coloca à disposição dos jovens seus conterrâneos.
Há piscinas para todos os gostos e carteiras, mas não me venham com essas lérias, a fruição que a piscina do José Cid proporciona não tem termo comparação com essas piscinas insufláveis ou aquelas desmontáveis que parecem um alguidar gigante, ficando com a sensação que a todo o momento pode rebentar e é agua por todo o santo lado.
Depois de divagar, a soalheira a mais contribui muito para estes momentos; vamos lá pegar o "touro pelos cornos", expressão sempre acarinhada por alguém que seja ribatejano de gema, como será o caso em apreço.
Fazendo a vontade ao cantor Fernando Daniel fui informar-me: muitos artistas, de entre os quais o José Cid, apresentaram candidaturas no programa Garantir Cultura promovido pela Ministério da Cultura. A fundamentação da candidatura foi muito competente "mergulhando" na excelência — a piscina, não me sai da cabeça — e assim o José Cid foi um dos que conseguiu ganhar o subsídio. Receberá 50 mil euros para ajudar na gravação do novo álbum de rock sinfónico "Vozes do Além."
(Deve ser catita este álbum estar como música ambiente, enquanto se dão umas braçadas refrescantes na piscina).
Ora o proponente ganhador não rogado informou: "Estive praticamente um ano parado sem trabalho por causa da pandemia e decidi procurar ajuda”; pois "estive a fazer o álbum, depois fizemos contas. Era impossível fazer este álbum porque é um duplo vinil e ainda por cima vai levar uma pen e é um trabalho de masterização e fabricação caríssima que é feita no estrangeiro.”
Não sei por onde começar.
Não é de bom tom falar de dinheiro, bem sei, contudo o sentido justiça está em primeiro lugar.
Não sei quem mais ganhou subsídios provenientes deste programa lançado em Março, mas se forem artistas com carreiras longas e semelhantes à do José Cid, constato que a equipa que avalia as candidaturas não utilizou os critérios mais adequados; uma vez que artistas como o José Cid têm muita experiência artística e rodeiam-se dos melhores para apresentarem uma candidatura vencedora. Não concorrem em vão, mas sabendo de antemão que não vão ser menosprezados, nem enxovalhados. O peso do nome, por mais que o projecto seja extraordinário, não deve sobrepor-se à oportunidade de financiar projectos de artistas de qualidade que necessitam de cimentar as curtas carreiras que ficaram periclitantes com esta crise sanitária. Os subsídios estatais têm de servir para ajudar a valorizar e potenciar as primeiras partes das carreiras, não é quem tem quintas partes de anos e anos de estrada que por deficiente gestão de carreira abocanham os poucos fundos financeiros que existem na cultura.
A culpa não é do José Cid, mas da equipa que aprovou um projecto que não é fundamental perante outros artistas com vidas completamente destruídas por não terem aptidão para a manifestação artística predominante em Portugal na qual ganham umas boas coroas, mas têm talentos para outros tipos de arte que estão sempre em crise: dança, artes circenses, por exemplo.
O que me custa mais nesta malícia, que pelos vistos tem apoio, é o facto do autor da "Cabana junto à praia" ter 79 anos, por isso, não ser essencial este subsídio, respeitando a sua idade, a sua carreira contudo está reformado. Sim, certamente, está reformado, para além do enorme portfólio de canções de sua autoria com o qual obterá alguns dividendos com os direitos de autor.
Alguém que nunca perde a chance de fazer gala: "Dou 1 milhão de euros se ele cantar como eu estou a cantar. Aposto com ele! No último espetáculo que ele fez aqui em Lisboa estava já muito atrapalhadito. E o Tio Zé não está. E eu sou um bocadito mais velho do que ele! Não parece, mas sou. Há uma grande diferença entre nós: eu sou poeta, o Elton John não é”; se podia esbanjar um milhão de euros em cretinices não se compreende como é que não tem uns míseros cinquenta mil euros para pagar o custo de um álbum de músicas?! Pelos vistos o orçamento submetido para o subsídio era de 78 mil euros, atribuíram-lhe 50 mil euros, é mesmo um sortudo. A quem irá "cravar" os restantes 28 mil euros? O município onde está localizada a piscina Cid esteja em alerta pode cair no e-mail um pedido todo XPTO para patrocinar as "Vozes do Além".
Este álbum está idealizado desde os anos noventa, não o concretizou pois é dispendioso a sua gravação, ironicamente está a facturar com a pandemia Sars-Cov-2, sem ela este "Vozes do Além" não saía da tumba.
Fiquei em êxtase por ser íntegro e responsável com a utilização do subsídio: “Este subsídio, meninos e meninas, não é feito para comprar um automóvel novo ou passar férias nas Caraíbas com a minha mulher;” e esqueceu-se de dizer que também não é para mandar fazer uma piscina, pois já a tem e inclusive oferece o seu usufruto nos meses de verão.
Nestas polémicas nunca podem faltar a rudeza e a petulância: "É para trabalhar e compensar um ano e meio de trabalho fechado no estúdio. Se houver reacções que são negativas, problema deles. Mordam-se e morram envenenados, estou farto disso." Não se enerve, tanta gente que trabalhou de borla, pergunte ao pessoal de saúde como está o pagamento das horas extraordinárias, e nem por isso têm estes momentos de drama "queen" .
Quer que nos mordemos e morremos envenenados? Ó José Cid tenha cuidado com o que deseja para o seu semelhante. Para se defender não é preciso ser primitivo na argumentação. Concluo que anda a aproveitar pouco a piscina, precisa de tirar a bóia para afogar essas suas ideias sinistras que nadam na sua mente.
Entretanto agradeceu o apoio do seu colega Fernando Daniel: "Felizmente, existem pessoas inteligentes, talentosas e que não são invejosas! Obrigado, Fernando Daniel!"
Naturalmente não vou ter a sorte de ser convidada para dar uns mergulhos na piscina, quanto mais receber elogios, pois devo pertencer ao grupo das invejosas; a grei talentosa e inteligente, como ele, que açambarca os subsídios estatais sabendo que há artistas na falência, que não têm 79 anos e a salvaguarda da pensão de velhice. O respeito geracional alimenta-se com a consciência de saber qual o nosso lugar, não é com estes privilegiados do meio musical que atropelam tudo e todos para estar sempre em evidência injustamente.
Esta está boa que nos mordemos e a que morramos envenenados... há certas músicas que são puro veneno de tão clichês e mordemos os lábios ao percebermos que são cópias baratas das "Vozes estrangeiras do Além".