"(...) — A gaita é que os veterinários não dão injecções às pessoas (...)"
António Lobo Antunes, Caminho como uma casa em chamas
Antes, durante e depois do confinamento por acaso o seu médico de família telefonou-lhe?
Se sim, teve mais sorte do que eu!
Confinei, desconfinei sem receber um telefone do meu médico de família. Eu como sou uma rapariga jovem ainda dou um desconto a esta indiferença por parte do meu rico médico de família; porém as pessoas maiores de 65 ou com doenças crónicas também não receberam uma única chamada telefónica simplesmente para dizer um olá, para desejar uma Páscoa Feliz e pedir para não exagerar na ingestão de amêndoas tipo francês.
Esta insensibilidade toma maior proporção em cidades pequenas, freguesias com pouca densidade populacional, onde se conhece praticamente toda gente. Em que o clínico geral tem à sua responsabilidade uma lista pequena de utentes.
Junho, Julho, Setembro, Outubro, Novembro passaram, estamos em Dezembro e ainda não percebi qual a função que os médicos com especialidade em Medicina Geral e Familiar desempenham no plano de prevenção e combate à pandemia Sars-Covid-2.
[Se alguém souber, peço que me esclareça!]
Os tempos evoluíram, não estou a exigir que voltem a ser uma espécie de João à semana, mas podiam fingir que se preocupam pelo menos com os seus doentes crónicos, que por causa do fogo cerrado e cruzado de desinformação que se instalou e que conduziu, por exemplo, ao aumento dos índices de ansiedade em pessoas que já estão com uma mini-farmácia em casa.
Não tenho a soberba suficiente para afirmar que estiveram de férias, mas tenho a petulância de considerar que estiveram quase de férias.
[Em muitos casos, em demasia diria eu, não foi preciso o decretar do confinamento para praticarem a ociosidade, já a praticavam voluntariamente, desesperando quem lhe calhou em sorte ter esse bendito médico de família ausente sine die.]
Quando o Governo decretou no âmbito do Estado de Emergência a renovação automática das receitas médicas, que causou alguns enganos e constrangimentos, vi logo que o papel do médico de família seria secundarizado. Porém, o que os próprios fizeram para reverter essa intenção decretada em Diário da República? Assobiaram para o lado. E bateram palmas com os Centros Saúde de porta fechada em que a maior parte fazia um trabalho administrativo residual, por mais que as administrativas estivessem lá dentro pouco ou nada podiam fazer sem as equipas médicas.
Centralizou-se o "rastreio" do vírus Covid-19 obrigando a contactar a linha SNS 24 a relatar sintomas que se confundem com a gripe. Tudo certo. E depois? Os contactos ou são de uma central qualquer ou é o delegado de saúde que às vezes pergunta como está "a travessia no deserto" em que a doença nos lança, mesmo quando os sintomas e a evolução do vírus são ligeiros; só o facto de se ter o diagnóstico positivo, cria um grande turbilhão na nossa cabeça: será que contagiei alguém, será que quem contagiei foi preciso recorrer ao internamento hospitalar? São dúvidas que habitam em nós, não há que esconder.
Ainda nos vão dizendo agora o seu processo é acompanhado pelo seu médico de família. Pois isso são palavras lidas dos últimos guias de orientações escritos sem pensar. Até porque ainda há pessoas que não têm médico de medicina geral e familiar. Dizem que há escassez. Diria desorganização. Também quando se tem parece que é preciso ir à Lua e voltar e mesmo assim não se consegue uma consulta. Telefonam, telefonam e ninguém está no outro lado. Foi o que se passou com muitas pessoas quando o Presidente Marcelo e Primeiro-Ministro António anunciou a época balnear. Quando estiveram de Março a Junho a contar os botões da bata chegados ao verão, era este tipo de notícias que mais se ouvia: "Centros de saúde: utentes queixam-se de dificuldades em marcar consultas". Ou o seu médico foi uns dias de férias, caso precise recorra à consulta de recurso/reforço.
As praias adaptaram-se mais rápido à afluência controlada de pessoas do que os centros de saúde. Ironia das ironias.
Os cuidados primários de saúde foram pura e simplesmente confinados durante a primeira fase da pandemia e passou a ser a conta-gotas a partir de Junho e até ao momento.
Amiúde ouço que a Medicina Geral e Familiar é e deveria ser a porta de entrada no sistema de saúde e o seu pilar principal. Na teoria, pois na prática foi tudo ao contrário. Fechou-se tudo. Será que não confiam na estrutura organizativa dos serviços de saúde primários?
Um enorme erro governativo que se cometeu, pois sabendo que um clínico geral, o nosso querido médico de família, comporta duas funções essenciais no SNS: 1) fazer a triagem dos problemas de saúde dos cidadãos e 2) ser o gestor/distribuidor dos utentes para os cuidados de saúde secundários e terciários. Ninguém quis saber da ideia fundamental: o médico de família é um gestor do doente e da família. Mais grave, o próprio clínico geral esqueceu-se de exercer essa sua grande, enorme missão junto dos seus utentes que acompanha, em muitos casos, desde o seu nascimento. Tem um conhecimento específico do seu utente tal como do seu agregado familiar, papel esse que foi totalmente negligenciado.
Não dignificaram (Governo e a própria classe) o exercício da Medicina Geral e Familiar, está estudado que estes especialistas estão habilitados a solucionar entre 85% a 90% das situações clínicas. Certamente, teriam evitado o recorde de mortes que assolou Portugal em 2020. Um simples telefonema teria feito muita diferença em muitos casos, a ideia romântica que nos vendem que o nosso médico de saúde pode ser um "conselheiro", "um amigo", alguém que passou a fazer parte da nossa família não passa de conversa de circunstância, embrulhada de cinismo. Para mim bastava que fosse alguém que desempenhasse com afinco e nobreza a função de cuidador profissional para a qual está a ser pago. Simples. Fingir que se preocupava para justificar a remuneração que é paga pelo erário público (impostos pagos pelo contribuinte).
Tenho de ressalvar que existirão médicos de família que estiveram sempre em contacto com os seus utentes durante esta pandemia da Covid-19 e não se limitaram a remeter as receitas médicas dos doentes crónicos para o telemóvel ou e-mail, felizmente que há excepções. E um bem haja para esses clínicos que levaram o objectivo de servir a sociedade ao extremo reinventando novas formas de acompanhamento e de vigilância.
[Aguardo com expectativa exemplos de relatos de um bom acompanhamento do seu médico durante a pandemia.]
O que é certo é que a figura do delegado de saúde ganhou maior destaque. Rejuvenesceu. Nunca ouvi tantas vezes as palavras: delegado de saúde. Prestigiaram a burocracia. É a lição que tiro: deram palco aos burocratas. Nunca vamos longe quando se fazem e se privilegiam estas escolhas.
Já vi o meu médico de família ao longe, acenou-me. Retribui o aceno. Pensei para mim: ainda se lembra que sou sua utente, não está tudo perdido.
Esperarei pelo contacto em nome do meu médico para me apresentar no dia e hora marcados para me ser administrada a vacina. Mais uma vez não será o SR. DR. a mandar que me prepare e me sente na cadeira para me ser administrada a vacina, mas a minha enfermeira que auxilia o tal médico que me acenou no outro dia.