Sim,
conheço a força das palavras,
menos que pétalas pisadas
num salão de baile,
e no entanto
se eu chamasse
quem dentre os homens me ouviria
sem palavras?
Carlos de Oliveira, Trabalho Poético
10 de Junho dia de Camões, de Portugal e das Comunidades Portuguesas.
Supõe-se que seria o dia de falecimento de Luís Vaz de Camões, o poeta que exaltou, acarinhou as palavras. Sem elas não seria anualmente lembrado, apesar de começar a estar esquecido pela grei das manifestações importadas totalmente plagiadas.
Não há bolo celebrativo, porém a melhor forma de festejar Camões é colocar velas a iluminar as suas, as nossas palavras. Será a minha singela homenagem.
Comunica-se com gestos, com imagens, com sons e com palavras, pois pretendemos (necessitamos, também) que exista alguém que nos ouça, que preste atenção àquilo que queremos dizer aos rostos anónimos e principalmente aos rostos familiares.
É impossível não dar relevância às palavras que estão na ordem do dia escritas a preto carregado em cartazes nas manifestações racistas contra o racismo: Polícia Bom é Polícia Morto ou O Diabo Veste Farda ou De Minnesota até ao Porto Polícia Bom é Polícia Morto.
Todos estamos elucidados que um conjunto de letras à toa não pode ser considerada uma palavra; por sua vez, um conjunto de palavras aleatoriamente colocadas ao acaso não forma uma frase. Assim, as palavras foram escolhidas com base nos critérios históricos, lógicos e psicológicos de acordo com o melting pot que é a sociedade dos Estados Unidos da América. Aquelas palavras farão sentido empunhadas e gritadas nas manifestações em Portugal?
Os americanos podem justificar as escolhas das palavras recorrendo ao Ruy Belo: “conheço as palavras pelo dorso. Outro, no meu lugar, diria que sou um domador de palavras. (...) Sim conheço as palavras. Tenho um vocabulário próprio. O que sofri, o que vim a saber vim muito esforço fez inchar, rolar umas sobre as outras palavras. As palavras são seixos que rolo na boca antes de as soltar.”¹
Nos Estados Unidos da América uma simples abordagem a um polícia para pedir uma informação é feita com distanciamento físico e o polícia coloca a mão na arma. É de fácil explicação este modus operandi: num país em que se promove a compra e uso de armas, o polícia não sabe se quem o aborda não tem uma arma consigo. Excesso de zelo, pensarão muitos, espírito de auto-defesa comentarão outros.
Camões não se deve importar e convido Teixeira de Pascoaes para se juntar à pequena homenagem das palavras: “A linguagem é uma obra da Natureza e do homem.
As coisas «falam» à nossa sensibilidade que converte a impressão recebida numa forma de som articulado; isto é, «nomeia» a coisa que a feriu.
O nome duma (principalmente das coisas vivas e naturais) é, por assim dizer, essa mesma coisa em espírito verbal. (...)”²
As palavras são lidas, interpretadas consoante a sociedade mais ou menos conservadora de cada país. As palavras não sofrem, fazem sofrer; as palavras não são injustas, quem as utiliza had hoc é que pratica injustiças, incita à violência, às discriminações laboral e racial.
Em Portugal, as nossas autoridades policiais cometem abusos excessivos com recurso à força para intimidar e/ou punir o cidadão desordeiro com comportamentos desviantes à margem da lei. Está errado e temos de combater essas situações abusivas, todavia aquelas palavras nos cartazes nas manifestações que foram uma cópia das manifestações em Minnesota são exageradas, pouco aceitáveis; e ao abrigo do código penal português o incitamento ao ódio e à violência “é punido com pena de prisão de 6 meses a 5 anos."
De novo Teixeira de Pascoaes toma a palavra: “Dum modo geral e vago, assim se criaram as palavras, verdadeiros seres com alma e corpo, que, e organismos rudimentares, interjeccionais, se foram aperfeiçoando, pelas leis que presidem ao desenvolvimento das outras criaturas.”³
Compreendo a solidariedade com o afro-americano George Floyd assassinado enquanto alguém filmava (quem filmou não podia ter salvado a vida do George Floyd? Ou a preocupação foi registar para memória futura, sem pedir auxílio…).
Já não compreendo a maioria das palavras a marcador preto, comprado meia-hora antes na papelaria, nas manifestações de Lisboa e Porto. São palavras de lá (EUA) sem fazer grande sentido cá (Portugal). Lá há uma sociedade com especificidades que Cá não temos com aquela gravidade. Somos países completamente diferentes. As lutas deles são as nossas, porém nós temos de adaptar conscientemente as palavras nas nossas manifestações ao nosso contexto para mudar o nosso status quo. Apesar de tudo Lá vemos governadores, juízes, outros lugares de funções laborais de topo ocupados por afro-americanos. Cá, ainda há muito para fazer na inclusão dos afro-portugueses em funções de topo. Se a meritocracia não é uma ferramenta muito utilizada, o elevador social para os afro-portugueses é um sem fim de solavancos.
Lá (EUA) não farão manifestações de condenação aos nossos problemas sistémicos, organizam manifestações com palavras a mostrar as realidades deles. Cá (Portugal) instrumentalizamos as manifestações cansando as palavras para “falar” dos problemas dos afro-americanos, sem ter a preocupação, a sensibilidade de gastar tinta preta com palavras denunciadoras das nossas reais discriminações sociais que podem estar vestidas com roupa de racismo ou de xenofobia, de violência...
Por favor cansemos as palavras a evocar as nossas injustiças de “cimento” velho e fresco que pululam na sociedade da Pátria de Camões! Não serão as outras pátrias que irão partir o “cimento”, somos nós, portugueses descendentes de Camões.
Honrosamente as últimas palavras de encerramento desta singela homenagem a Camões pertencerão ao Carlos Drummond de Andrade: “Assim em plena floresta de exclamações, vai-se tocando prà frente. Ou para o lado. Ou para trás. Ou não se toca. Parado. Encostado. Sentado. Deitado. De cócoras. Olhando. Sofrendo. Amando. Calculando. Dormindo. Roncando. Pesadelando. Fungando. Bocejando. Perrengando. Adiando. Morrendo.
Em redor, não cessam explosões interjectivas. Coitado! Tadinho… Canalha! Pilantra! Dedo-duro! Bandido! Querido! Amoreco! Peste! Boneco! Flor!
E vêm outras vozes breves, no vão do vaivém:
É. Pois é. Ah, é. Não é? Tá. OK. Ciao. Tchau. Chau. Au. Baibai. Oi. Opa! Epa! Ui! Ai! Ahn…
Que fazer senão ir na onda? Lá isso… Quer dizer. Pois não. É mesmo. Nem por isso. Depende. É possível. Antes isso. É claro. É lógico. É óbvio. É de lascar. Essa não! E daí? Sai dessa.
Não diga! É o que lhe digo. Eu não disse. Repete. Como ia dizendo… Não diga mais nada. Digo e repito. Dizem… Que me contas!⁴
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¹ Imagens vindas dos dias, in Homem de Palavra(s);
² e³ Arte de Ser Português;
⁴ O poder ultra jovem e mais 79 textos em prosa e verso.